A pandemia de COVID-19 vem trazendo significativa mortalidade e uma distensão do sistema de saúde para todo o mundo. Como ainda não há nenhum tratamento efetivo para seu combate a intervenção estatal vem se concentrando no rastreamento da doença, na quarentena e no distanciamento social. Estas medidas vêm tendo variada taxa de sucesso ao redor do mundo a depender das condições culturais de cada local. A principal, e praticamente única medida que está sendo utilizada no Brasil neste momento é a quarentena (lock down), ou seja, distanciamento social absoluto. Esta medida está sendo relativamente eficiente, mas deve ser compreendida apenas como uma forma de postergar a inevitável contaminação total. Um estudo publicado pela universidade de Harvard no final de março alerta aos perigos de postergar em demasia a doença em países tropicais uma vez que, com isto, seu pico pode coincidir com a influenza sazonal sobrecarregando ainda mais a capacidade do sistema de saúde. Neste mesmo estudo os autores sugerem que será necessário manter algum tipo de medida de distanciamento social até 2022.
Quarentena
Levando em consideração o longo período de disseminação da doença é inevitável que as medidas de quarentena sejam abrandadas para que a economia possa voltar a funcionar. Com isto, é de obrigação do Estado aproveitar o tempo que estamos ganhando com a postergação da doença através do lock down para implementar efetivas medidas de distanciamento social que promovam um adequado funcionamento da economia sem que haja mortes desnecessárias pela falta de leitos. Estas medidas devem ser concretizadas da forma mais veloz possível, uma vez que será necessário reorganizar toda a economia para funcionar dentro destes novos parâmetros. Uma das medidas que vêm sendo utilizadas por todo o mundo é a obrigação do uso indiscriminado de máscaras para permitir com que os cidadãos, fora dos grupos de risco, possam permanecer economicamente ativos e ainda assim diminuir a transmissão da doença. Entretanto, existem problemas práticos associados a isto, como a necessidade da produção de máscaras suficientes a um preço acessível e a efetiva adoção da população as imposições governamentais, algo que não deve ser considerado banal no Brasil.
Assim, existe na economia nacional apenas uma instituição que pode garantir a reorganização necessária para o adequado funcionamento econômico durante este longo período com medidas de distanciamento social, o Estado. É o Estado nacional que deve estabelecer as regras de funcionamento que irão garantir a demanda de bens agora essenciais para que as empresas privadas possam então redirecionar sua produção a nova demanda estabelecida. Sem que o Estado estabeleça quais são os critérios de produção e o tempo de permanência das restrições nenhuma empresa privada irá imobilizar recursos através do investimento em meio a queda de faturamento atual. Será a partir da aprovação de novas regras que irão consequentemente garantir uma demanda futura estável que as empresas começarão a se aventurar com novos investimentos que são agora tão essenciais. Alguns destes bens essenciais como respiradores e demais equipamentos hospitalares terão sua demanda dada em maior medida pelo próprio Estado visando sustentar o sistema de saúde pública e ampliar sua capacidade de atendimento. Já outros bens como máscaras, luvas e insumos de esterilização terão a demanda privada como principal impulsionador.
Outra medida considerada essencial pelo estudo da universidade de Harvard é a quarentena intermitente. Esta estabelece que quando houver um surto generalizado da doença, que ocupe mais de um percentual pré-determinado de leitos disponíveis, às pessoas da região afetada deve retornar ao lock down até que haja liberação de uma quantidade significativa de leitos. Isto significa que, com números hipotéticos, quando a ocupação dos leitos da cidade de São Paulo ultrapassar os 80% toda a cidade deve retornar ao lock down até que este número caia abaixo de 50%. É de suma importância considerar o delay temporal entre a contaminação e a internação para que esta medida seja efetiva e não haja uma sobrecarga do sistema. Ainda assim, será necessário ajustar os números durante o processo mesmo partindo das melhores projeções.
A grande maioria dos outros países, após a fase inicial de lock down, onde já se vê alguma retomada da atividade econômica, vem também implementando medidas que inibem a mobilidade de pessoas e pontos de controle para buscar ativamente por pessoas infectadas. Estas medidas são de extrema importância para uma atuação ativa contra a disseminação generalizada do vírus. Estudos preliminares da OMS estabelecem que o vírus tem uma capacidade de disseminação de 2,5, ou seja, uma única pessoa contaminada deve levar o vírus adiante para 2,5 outras pessoas, em média. Ai a importância da busca ativa e isolamento máximo de casos conhecidos e possíveis vetores.
Tratando agora de formas para garantir a adesão da população nas medidas impostas é necessário a educação social por meio da comunicação de massas além de punições efetivas que sejam cumpridas (e sentidas) por todos. É necessário conscientizar a população que estas medidas de contenção são de interesse coletivo e que qualquer um que esteja descumprindo-as estará prejudicando a sociedade como um todo. Não é por opção que o governo está intervindo na vida das pessoas, mas sim para salvar vidas. Salvar vidas muitas vezes inclui medidas que podem, a um primeiro momento, parecer desagradáveis, mas mostram-se efetivas no médio prazo. Por isto, estas são medidas de responsabilidade social onde todo cidadão tem obrigação de fiscalizar o outro, visando o bem coletivo através do cumprimento das leis. Este é o tipo de conscientização e educação social que estamos aqui tratando, algo muitas vezes alheio a sociedade brasileira. De forma mais prática e concreta, é necessária a compreensão de que o não cumprimento destas medidas acarretará em vidas perdidas e distúrbios econômicos ainda mais intensos até a volta das atividades normais.
Economia
Tratamos na seção anterior exclusivamente de medidas sociais para mitigar os efeitos do COVID-19. Evidente que não é possível dissociar completamente a economia da sociedade e algumas medidas estabelecidas tem implicações econômicas, como a reorganização setorial e coordenação econômica da produção privada através de incentivos de demanda ou até mesmo incentivos fiscais. Vamos buscar agora tratar dos aspectos econômicos de atuação estatal para mitigar os efeitos destrutivos do vírus.
Uma das principais, mais amplas e difusas, medidas de sustentação econômica para a sociedade brasileira em meio a atual crise já vêm sendo efetuada pelo estado brasileiro e trata da garantia de uma renda mínima para a sobrevivência das pessoas. Apesar de ainda insuficiente e quase insignificante perante o que a maioria dos outros países vem fazendo, o auxílio emergencial é essencial para a sobrevivência de ao menos 30 milhões de brasileiros. Esta medida garante, não somente que as pessoas não morram de fome, mas também que haja significativa injeção de dinheiro numa economia estagnada.
A falta de circulação generalizada de dinheiro impede com que pessoas físicas e jurídicas honrem seus compromissos gerando uma quebra em todo circuito de circulação monetária. Isto deixa pessoas sem salários, empresas sem caixa e inviabiliza toda e qualquer demanda que não seja por produtos essenciais. A injeção de dinheiro na economia se apresenta como uma das únicas formas plausíveis de garantir com que haja algum tipo de circulação monetária neste período. Esta injeção deve ser feita nas duas diferentes frentes: para pessoas físicas e jurídicas. A injeção monetária para pessoas físicas vem sendo efetuada através do auxílio emergencial tratado no parágrafo anterior e, para as empresas, o governo vem buscando liberar linhas de crédito acessível que garantam o fluxo de caixa necessário para que as empresas consigam honrar ao menos seus mais básicos compromissos sem grandes prejuízos.
Em um momento extraordinário como o atual é essencial a socialização das perdas através de crédito a preço de custo para garantir a circulação monetária e uma subsequente retomada econômica. Se todas as empresas coletivamente pensarem apenas em minimizar suas perdas e deixarem de honrar todos seus compromissos haverá uma quebra sistêmica além da inviabilização de uma ágil retomada. Uma vez que recursos são desmobilizados, pessoas demitidas e produções cortadas, além de termos os impactos diretos da diminuição de circulação monetária que inviabiliza toda a cadeia de produção, temos também impactos secundários que atrasam a recuperação econômica. Diferentemente das outras crises que vivemos onde havia um desencontro entre o valor dos ativos e seu valor intrínseco, culminando com uma expressiva queda (correção de mercado), temos aqui uma crise sanitária que impede a circulação de pessoas. É importante aqui lembrar que o valor de um ativo financeiro é calculado através dos ganhos futuros esperados trazidos a valor presente. Isto quer dizer que, apesar de uma correção de mercado mostrar-se essencial para adequar a nova expectativa de ganhos futuros, que não é mais baseada em um ano corrente de 365 dias e sim um ano com uma quantidade reduzida de dias devido a quarentena, se o governo conseguir garantir a liquidez e sustentação dos pagamentos públicos e privados sem que haja uma desmobilização de recursos não deveria haver maiores perdas.
Temos também que considerar que se o governo não garantir estas linhas de crédito haverá, além da diminuição de circulação de moeda na economia por conta da inexistência dos fluxos de caixas necessários para que a sociedade consiga honrar seus compromissos, um aumento na preferência pela liquidez devido a grande incerteza causada pela crise. Isto agrava ainda mais os problemas já elucidados ao rarear a moeda em circulação.
Visando solucionar todos estes problemas, tomemos as atitudes do governo dinamarquês como exemplo. Lá foi aprovado um plano de alívio ao coronavírus que irá injetar aproximadamente 13 % do PIB dinamarquês na economia. Este plano tem como sua essência auxiliar trabalhadores e empresas até junho ao evitar demissões e falências e garantir que a economia possa ser “re-plugada” com o fim das restrições mais agressivas. O plano dinamarquês é um dos mais amplos do mundo e deve servir de referência para todos os outros países. Suas principais medidas são:
A garantia do pagamento de 90% dos salários até $ 3,800 euros para funcionários que forem mandados para casa;
A garantia do pagamento de 75% dos salários até $ 3,350 euros para os demais funcionários;
Pequenas empresas que comprovem uma queda no faturamento de 40% podem solicitar um auxílio governamental de até 80 % de suas despesas regulares;
Caso a empresa seja obrigada a se manter fechada durante o período de quarentena (restaurantes, cabeleireiros e etc) o governo irá cobrir até 100 % das despesas;
Empresas grandes que tiverem uma queda de ao menos 30 % podem solicitar crédito garantido pelo governo até 70 % de seu faturamento normal.
Um plano tão amplo quanto o do Estado dinamarquês seria definitivamente insustentável para o Brasil, mas deve ser compreendido como uma referência de atuação. A garantia de uma renda mínima através do auxílio emergencial tem um propósito similar as duas primeiras medidas do estado Dinamarquês e, para o cenário Brasileiro, cumprem bem a função de garantir a sobrevivência dos mais necessitados. Já a liberação de crédito acessível para todas as empresas do país é uma medida que se assemelha, dentro do possível, as medidas remanescentes. Entretanto, é essencial que este crédito seja liberado apenas perante uma importante contrapartida das empresas tomadoras, a não demissão de funcionários. Isto é de suma importância para garantir que nenhuma empresa tome o crédito às custas da sociedade sem um comprometimento com a manutenção do emprego.
Para garantir o pleno acesso da sociedade brasileira a estas linhas de crédito o governo deve liberar este dinheiro a preço de custo através, não somente dos bancos públicos, mas também dos bancos privados. Aqui é essencial um empenho dos bancos privados com a sociedade ao garantir que o repasse do crédito a preço de custo irá efetivamente ocorrer. Este comprometimento deve ser extremamente explícito uma vez que, devido a preferência pela liquidez do próprio banco perante o aumento de incerteza, é absolutamente racional que ele busque manter suas taxas de juros exacerbadamente altas e não repasse o dinheiro para as empresas necessitadas a um custo digno.
Temos então que é essencial o comprometimento tanto do Estado nacional quanto da sociedade brasileira neste esforço de combate e mitigação dos efeitos do coronavírus. Se o estado não se responsabilizar por efetivamente organizar a economia e continuar esperando passivamente por alguma intervenção divina que salve nosso país teremos o pior cenário imaginável no Brasil. Agora, se o governo assumir as rédeas do país e conduzir as preparações necessárias de forma adequada podemos esperar uma participação coletiva e perdas imensuravelmente menores.
Referências bibliográficas
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